Há somente 60 anos, em 27 de Fevereiro de 1953, celebrou-se em Londres, com representantes de 26 países, um acordo que concedeu o perdão de metade da dívida da Alemanha pós-guerra. Estados Unidos, Reino Unido, França, Holanda e Suíça contavam-se entre os países com créditos mais elevados. Entre os países que perdoaram 50% da dívida alemã estavam a Espanha, Grécia e Irlanda. A dívida total foi avaliada em 32 mil milhões de marcos representando cerca de 150% das exportações da Alemanha em 1950.
A Alemanha saiu da Segunda Guerra Mundial ainda com dívidas por pagar relativas às indemnizações de guerra impostas ao país pela conferência de paz de Versalhes em 1919.
A dívida da Alemanha (*) anterior à II Grande Guerra, calculada em cerca de 13,5 mil milhões de marcos, era enorme deixando-a numa situação de completa incapacidade para pagar.
Muitas vozes, incluindo John Keynes, argumentaram que essas dívidas impagáveis e as políticas económicas seguidas conduziram à ascensão do nazismo e à Segunda Guerra Mundial.
Essa dívida incluía os empréstimos contraídos pela República de Weimar com o propósito de cumprir os acordos impostos pelo Tratado de Versalhes de 1919. Esses acordos tinham sido objeto de dois reescalonamentos acabando mais tarde por sofrer um perdão parcial. Foi acordado o reescalonamento da dívida por um período de 30 anos beneficiando parte da dívida de um período ainda mais alongado.
O pagamento foi calendarizado para o período entre 1953 e 1983 com um período de carência para os primeiros cinco anos durante o qual apenas se pagariam juros. Na antevéspera da reunificação alemã (Outubro de 1990) o governo emitiu as últimas obrigações para pagar a dívida contraída na década de 1920.
Ao contrário da política atualmente seguida pela Troika, o Acordo de Londres de 1953 previa condições a cumprir pelos países credores que se obrigavam a garantir a capacidade de recuperação económica da Alemanha.
O acordo procurou assegurar o crescimento económico da Alemanha e a sua capacidade real para cumprir o pagamento da dívida. Para alcançar esse objetivo o acordo definiu três medidas fundamentais: Perdão de 50% da dívida, reescalonamento do prazo da divida e condicionamento do pagamento à capacidade de cumprimento do país.
Ficou ainda assegurada a possibilidade de suspensão e de renegociação dos pagamentos em caso de dificuldade. O montante afeto ao serviço da dívida nunca poderia ultrapassar 5% do valor das exportações alemãs e as taxas de juro foram estudadas para viabilizarem o bom funcionamento da economia situando-se entre 0 e 5 %. Os credores concordaram que seria inaceitável reduzir o consumo interno para pagamento da dívida, exatamente o oposto das políticas que hoje são impostas pela Troika.
É também interessante notar que as recomendações estabelecidas no acordo estipulavam a necessidade de dispensar um tratamento humano ao devedor.
Este acordo garantiu à Alemanha imunidade futura para eventuais novos pedidos de indemnização. O facto de não ter havido durante as décadas seguintes qualquer tipo de discussão sobre a dívida alemã prova que o Acordo de Londres foi muito eficiente e equilibrado.
As medidas adotadas foram fundamentais para a reconstrução da Europa devastada pela guerra. O espírito do Acordo de Londres contrasta profundamente com o sofrimento que atualmente está a ser infligido aos cidadãos europeus vítimas da crise financeira que assola a Europa.
O Acordo de Londres previa uma condição muito equilibrada ao obrigar a Alemanha a apenas efetuar o pagamento da dívida através do superavit da balança comercial. Os credores autorizavam ainda a Alemanha o direito de impor taxas unilaterais às importações que prejudicassem a sua indústria.
O que vemos hoje? Um desprezo absoluto pelos países devedores independentemente do défice crónico das suas balanças comerciais. A degradação económica a que assistimos ameaça seriamente a estrutura social dos países em crise.
Lamentavelmente os signatários não consideraram a necessidade de incluir no sistema de ensino alemão o Acordo de Londres como ferramenta de estudo para a juventude do pós-guerra. Às crianças alemãs, principalmente às que nasceram já depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, não lhes foi facultada informação detalhada sobre este importantíssimo acordo e sobretudo sobre as diversas matérias que então foram analisadas, sem as quais a Alemanha muito provavelmente não seria hoje a maior potência económica da Europa.
Este lapso impediu que as escolas alemãs desempenhassem um papel de maior relevância na formação das novas gerações no que respeita à delicada questão do relacionamento da nação alemã com os restantes países e na compreensão plena da atitude elevada que então os vencedores manifestaram para com os vencidos logrando ultrapassar com sucesso ódios profundos e vontades de revanche perfeitamente compreensíveis à luz das consequências arrasadoras provocadas pelos alemães às outras nações.
Esta lacuna não foi infelizmente colmatada pela generalidade dos órgãos de informação mais preocupados em sublinhar os milagres da recuperação económica alemã do que contribuir para a formação saudável de uma população anteriormente submetida a uma doutrinação política extremista, racista e elitista.
Talvez hoje os atuais dirigentes da Alemanha beneficiada pela compreensão e apoio dos vencedores tivessem outra atitude e manifestassem mais preocupação pela obtenção de negociações mais equilibradas e adequadas aos países em dificuldades. De realçar que parte dessas dificuldades são da responsabilidade dos próprios países desenvolvidos.
O Acordo de Londres criou as condições de sustentação que permitiram que um país completamente destruído e endividado pudesse evoluir sem que o seu endividamento prejudicasse o desenvolvimento económico.
Em 1953 a Alemanha tinha ainda dívidas dos empréstimos concedidos imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial para a reconstrução. EUA, Reino Unido, França Grécia, Espanha, Paquistão e Egito eram credores da Alemanha. A dívida alemã representava um quarto da riqueza nacional, bastante inferior à atual dívida da Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha.
Houve no entanto uma preocupação séria para evitar que o pagamento da dívida pudesse prejudicar a reconstrução do país. Por esse motivo os credores reuniram-se em Londres e acordaram ajudar um país que pretendia recuperar do estado de devastação total em que mergulhara por culpa própria.
Esse acordo também mostrou que a dívida não pode ser vista como uma responsabilidade exclusiva do devedor. Países como a Grécia acordaram de forma voluntária ajudar a criar uma Europa estável e próspera apesar dos crimes de guerra que os ocupantes alemães lhes tinham infligido apenas alguns anos antes.
O perdão da dívida alemã, inclusive do setor privado, foi alcançado com alguma facilidade antecipando uma crise real de consequências nefastas para a Alemanha.
Talvez a característica mais inovadora do Acordo de Londres tenha sido a cláusula que estipulava que a Alemanha Ocidental só pagaria dívidas recorrendo ao seu superavit comercial limitando os reembolsos a 3% das receitas de exportação anuais. Os países credores obrigavam-se a comprar bens à Alemanha Ocidental para verem liquidados os seus créditos.
A Alemanha Ocidental só pagava a partir de ganhos reais sem recorrer a novos empréstimos. Os credores da Alemanha tinham interesse e até beneficiavam do crescimento da economia do país.
Após o Acordo de Londres a Alemanha Ocidental conheceu um “milagre económico” com o problema da dívida solucionado e anos de crescimento económico.
Hoje constatamos que a solução para os países endividados é totalmente diversa. A prática tem sido a de forçar os governos a implementar medidas de austeridade e a liberalizar o mercado para se tornarem supostamente “mais competitivos”. Como resultado disso a pobreza e a desigualdade aumentaram na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. Este fenómeno já se tinha verificado em África nos anos 80 e 90 com o número de pessoas que vivem em extrema pobreza a crescer em 125 milhões enquanto as economias encolhiam. Atualmente a economia da Grécia encolheu mais de 20% com um em cada dois jovens desempregados. Em ambos os casos o endividamento cresceu.
A prioridade nos dias de hoje de um governo endividado é o pagamento das suas dívidas qualquer que seja o montante do orçamento que os reembolsos consomem. Em contraste com o limite de 3% sobre os pagamento da dívida alemã, o FMI e o Banco Mundial consideram atualmente sustentável pagamentos de dívidas de até 25% das receitas de exportação dos países endividados. O pagamento da dívida externa grega representa cerca de 30% das exportações.
A “estratégia” na Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e agora em Chipre consiste em colocar o fardo do ajustamento apenas sobre o país devedor para tornar a sua economia mais competitiva através do desemprego em massa e cortes salariais. Mas sem credores como a Alemanha dispostos a aumentar a importação de bens desses países isso não vai acontecer. Apenas será aprofundada a dor social nos países devedores.
O acordo da dívida alemã foi um elemento essencial para a recuperação da devastação da Segunda Guerra Mundial. Na Europa de hoje a dívida está a destruir o tecido social. Temos de considerar erradas, para não as classificar como criminosas, as políticas atuais dos líderes europeus.
Há todavia o exemplo positivo da Alemanha de há 60 anos.
Um dos ensinamentos mais relevantes do Acordo de Londres de 1953 está na consciencialização da necessidade de se evitarem os erros cometidos após a I Guerra Mundial que provocaram nos países vencidos uma grande desestabilização política e social.
O governo do Chanceler Konrad Adenauer (1949 a 1963) demonstrou uma grande habilidade política ao tirar partido da contribuição da Alemanha como Estado tampão durante o período de Guerra Fria.
A União Europeia, e em especial a Alemanha, deveriam refletir sobre as medidas que preconizam comparando-as com as estipuladas no Acordo de Londres. A opinião pública deve lutar para demonstrar que o cancelamento da dívida pública, ainda que parcial, pode ser viável e salutar se houver vontade política e forem adotadas medidas inteligentes que promovam o desenvolvimento económico.
A Europa precisa de refletir e de tomar medidas rapidamente sob pena de se afundar e de perder definitivamente o seu estatuto de continente privilegiado. Parece aconselhável, por exemplo, ter em conta as críticas do economista norte-americano Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, que considera errada a estratégia da União Europeia de combate à crise bem como os cortes acentuados na despesa pública.
Esta crise é certamente o primeiro resultado profundo da submissão dos interesses da Europa no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC) designadamente a abertura irracional dos seus mercados aos países asiáticos, com a China à cabeça, e com a consequente destruição da sua estrutura industrial e correspondente desemprego em larga escala. A China não cumpre os critérios da economia de mercado definidos pela OMC pelo que o estatuto de economia de mercado só lhe deveria ser concedido após cumprir todos os critérios. Só assim se pode assegurar a concorrência leal e de equilíbrio saudável.
(*) A reunião sobre as dívidas anteriores à II Grande Guerra teve lugar em Londres de 28 de Fevereiro a 28 de Agosto de 1952 com a presença de 22 países credores, do Banco Internacional de Pagamentos (BPI) e de representantes de credores privados.